quinta-feira, agosto 30, 2007

Eu coração Gabo

"Ah, de volta a Macondo. Já estava com saudades." Foi o que senti ao começar a ler "A revoada", de Gabriel García Márquez. Como se estivesse visitando novamente uma daquelas cidadezinhas de Minas Gerais, que parecem paradas no tempo, mas que deixam uma sensação gostosa na gente quando se vai embora.

Publicado anteriormente no Brasil como "O enterro do diabo", o romance de estréia do escritor conta pela primeira vez a história de Macondo, povoado que ficou conhecido com "Cem anos de solidão", anos depois.

É a narrativa do enterro de um médico que chegara ao vilarejo vinte e cinco anos antes, e em cujos olhos "duros e amarelados" não se podia ver alma nem sentimento. O homem, que tinha hábitos estranhos, era odiado por todo o povo, com exceção do coronel - do qual não se diz o nome - que tem por ele compaixão e respeito.

São três narradores: o coronel, sua filha Isabel e seu neto, que, paralelamente à descrição da cena do enterro, contam um pouco de suas vidas e dos anos anteriores naquela cidade que parece parada no tempo. A utilização de linguagens e termos diferentes ajuda o leitor a não se perder entre as personagens, que se alternam na narrativa.

O que mais me encantou neste livro não foi a história em si, que inclusive, já demonstrava a vocação de García Márquez para tratar de personagens solitários. O mais incrível, pra mim, foi pensar que, aos 22 anos, Gabo já tinha a capacidade de encher seus leitores de prazer com descrições ricas em detalhes e composições de frases tão perfeitas:

Do menino:
"O calor é sufocante na sala fechada. Ouve-se o zumbido do sol nas ruas, nada mais. O ar é parado, concreto; tem-se a impressão de que se poderia cortá-lo com uma lâmina de aço. Na sala onde colocaram o cadáver sente-se a presença de baús, mas não os vejo em nenhuma parte. Há uma rede num canto, com um dos punhos presos no armador. Um forte cheiro de restos. E creio que as coisas arruinadas e quase desfeitas que nos rodeiam têm o aspecto das coisas que devem cheirar a restos, mesmo que tenham outro cheiro."

De Isabel:
"Por esse motivo também é que eu deveria ter deixado o menino em casa; para não comprometê-lo nessa confabulação que agora se encarniçará em torno de nós como o fez o doutor durante dez anos. O menino deveria permanecer à margem desse compromisso. Nem ao menos sabe por que está aqui, por que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece silencioso, perplexo, como se esperasse que alguém lhe explicasse o significado de tudo isso; como se aguardasse, sentado, balançando as pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esse espantoso enigma. Quero ficar segura de que ninguém o fará; de que ninguém abrirá esta porta invisível que o impede de ir além do alcance dos seus sentidos. Várias vezes já me olhou e eu sei que me vê estranha, desconhecida, com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser identificada nem mesmo pelos meus próprios pressentimentos."

Do Coronel:
"Poucos dias depois, ele voltaria para sempre da barbearia e se fecharia no quarto. Naquela última noite, porém, no corredor, uma das mais cálidas e densas de que me recordo, ele mostrou-se compreensivo como em poucas ocasiões. A única coisa que parecia viver em meio àquele imenso forno era o surdo revérbero dos grilos excitados pela sede da natureza, e a minúscula, insignificante e no entanto desmedida atividade do alecrim e do nardo, ardendo no centro da hora deserta. Ambos ficamos calados um instante, suando essa substância gorda e viscosa que não é suor mas a baba solta da matéria viva em decomposição."

E, novamente, de Isabel:
"- E como vai você com o negócio? - disse. Meme sorriu. Seu sorriso era triste e taciturno, como se não fosse o resultado de um sentimento atual, mas como se o tivesse guardado na gaveta e só tirasse nos momentos indispensáveis, mas usando-o sem qualquer propriedade, como se o uso pouco freqüente do sorriso lhe houvesse feito esquecer a maneira normal de utilizá-lo."

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