
Publicado anteriormente no Brasil como "O enterro do diabo", o romance de estréia do escritor conta pela primeira vez a história de Macondo, povoado que ficou conhecido com "Cem anos de solidão", anos depois.
É a narrativa do enterro de um médico que chegara ao vilarejo vinte e cinco anos antes, e em cujos olhos "duros e amarelados" não se podia ver alma nem sentimento. O homem, que tinha hábitos estranhos, era odiado por todo o povo, com exceção do coronel - do qual não se diz o nome - que tem por ele compaixão e respeito.
São três narradores: o coronel, sua filha Isabel e seu neto, que, paralelamente à descrição da cena do enterro, contam um pouco de suas vidas e dos anos anteriores naquela cidade que parece parada no tempo. A utilização de linguagens e termos diferentes ajuda o leitor a não se perder entre as personagens, que se alternam na narrativa.
O que mais me encantou neste livro não foi a história em si, que inclusive, já demonstrava a vocação de García Márquez para tratar de personagens solitários. O mais incrível, pra mim, foi pensar que, aos 22 anos, Gabo já tinha a capacidade de encher seus leitores de prazer com descrições ricas em detalhes e composições de frases tão perfeitas:
Do menino:
"O calor é sufocante na sala fechada. Ouve-se o zumbido do sol nas ruas, nada mais. O ar é parado, concreto; tem-se a impressão de que se poderia cortá-lo com uma lâmina de aço. Na sala onde colocaram o cadáver sente-se a presença de baús, mas não os vejo em nenhuma parte. Há uma rede num canto, com um dos punhos presos no armador. Um forte cheiro de restos. E creio que as coisas arruinadas e quase desfeitas que nos rodeiam têm o aspecto das coisas que devem cheirar a restos, mesmo que tenham outro cheiro."
De Isabel:
"Por esse motivo também é que eu deveria ter deixado o menino em casa; para não comprometê-lo nessa confabulação que agora se encarniçará em torno de nós como o fez o doutor durante dez anos. O menino deveria permanecer à margem desse compromisso. Nem ao menos sabe por que está aqui, por que o trouxemos a este quarto cheio de escombros. Permanece silencioso, perplexo, como se esperasse que alguém lhe explicasse o significado de tudo isso; como se aguardasse, sentado, balançando as pernas e com as mãos apoiadas na cadeira, que alguém lhe decifre esse espantoso enigma. Quero ficar segura de que ninguém o fará; de que ninguém abrirá esta porta invisível que o impede de ir além do alcance dos seus sentidos. Várias vezes já me olhou e eu sei que me vê estranha, desconhecida, com este vestido fechado e este chapéu antigo que pus para não ser identificada nem mesmo pelos meus próprios pressentimentos."
Do Coronel:
"Poucos dias depois, ele voltaria para sempre da barbearia e se fecharia no quarto. Naquela última noite, porém, no corredor, uma das mais cálidas e densas de que me recordo, ele mostrou-se compreensivo como em poucas ocasiões. A única coisa que parecia viver em meio àquele imenso forno era o surdo revérbero dos grilos excitados pela sede da natureza, e a minúscula, insignificante e no entanto desmedida atividade do alecrim e do nardo, ardendo no centro da hora deserta. Ambos ficamos calados um instante, suando essa substância gorda e viscosa que não é suor mas a baba solta da matéria viva em decomposição."
E, novamente, de Isabel:
"- E como vai você com o negócio? - disse. Meme sorriu. Seu sorriso era triste e taciturno, como se não fosse o resultado de um sentimento atual, mas como se o tivesse guardado na gaveta e só tirasse nos momentos indispensáveis, mas usando-o sem qualquer propriedade, como se o uso pouco freqüente do sorriso lhe houvesse feito esquecer a maneira normal de utilizá-lo."